Texto

Ante-câmara (Recordação)

Quase todos os cafés da minha aldeia, para além dos troféus dos campeonatos amadores de futebol 5, expunham por cima da máquina de café uma colecção desbotada e amarelecida de uniformes desportivos, por vezes acompanhados de chapéus. Ora pendurados em cabides, ora encaixilhados em molduras douradas com vidros, quase sempre autografados por quem os vestiu.

PIET NO OUTLET


O Israel disse-me, no atelier, que um dos pretextos para os seus “Uniformes de Tela” foi um certo fascínio pelo trabalho gráfico de uma artista russa (lituana em rigor), por sinal casada com Rodchenko, Varvara Stepanova.
Desconhecia-a confesso, o que me levou a uma pesquisa duplamente entusiasmada.
Varvara integrou activamente a cena Construtivista (Rodchenko, Popova, Aleksei Gan) que então despontava na senda da reconstrução europeia após o colapso da I Guerra Mundial.

Tanto Varvara Stepanova como todos os artistas militantes do programa ideológico Construtivista tinham um propósito tão claro quanto revolucionário: qualquer gesto artístico em vez de apontar para o espírito do indivíduo deverá dar as mãos com a fábrica na construção de uma sociedade melhor. Este vínculo com a indústria levou-os peremptoriamente a desviar as suas práticas para meios que se ligavam de forma mais premente com a técnica: design gráfico, fotografia, textil, posters, propaganda política.

Varvara defende inclusive, num texto associado a uma exposição de arte abstracta intitulada 5x5=25 (Moscovo, 1921), a composição como a única abordagem contemplativa possível do artista, assim como, adverte para o facto de tanto a técnica como a indústria terem confrontado a arte com o problema da construção como uma ideia de acção e não de reflexão. Este enunciado bárbaro, sem precedentes históricos, pressupunha uma dissolução absoluta do objecto artístico como entidade única e aurática.

Porém quando o Vitor Israel nas suas pinturas pega nas linhas gráficas de um uniforme de Stepanova para ensaiar uma plêidade de trinta e cinco variações cromáticas e compositivas traz, inevitavelmente por arrastamento, para além de todo um imaginário popular ligado aos uniformes do futebol ou de qualquer padrão da moda, todo este contexto ideológico do artista proletário que prefere a fábrica à espiritualidade da galeria.

O mais curioso é o facto do artista em causa não vestir esta camisola, aliás ironicamente inverte a situação colocando os uniformes (ou a sua representação pictórica) na parede da galeria devolvendo-lhes a contemplação que outrora Stepanova e companhia tentaram irradicar.

Deste modo, Israel coloca-nos perante um aparente imbroglio: posicionarmo-nos como consumidores perante uma espécie de catálogo de produtos excedentários de outlet, mas com Piet, Wassily e Kasimir na cabeça.



Samuel J.M. Silva
10 Julho de 2013


*O presente texto deve ser impresso a vermelho porque foi escrito a sul do Tejo.



























RUMO A OESTE - Exposição colectiva integrada no projecto EXPEDIÇÃO
Maus Hábitos, Porto, 2013


Viagem e bagagem são palavras que rimam.
Quando se vai numa viagem prepara-se uma bagagem.
Prepara-se uma bagagem reunindo aquilo que nos vai ser útil, ou aquilo que nos poderá vir a ser útil. Faz-se uma mala.
Na mala, podemos reservar um espacinho para trazer coisas no regresso.
Em regra, aquilo que nos move para sair do sítio não é o que já temos, mas aquilo que possamos vir a encontrar. Embarcar numa expedição é isto mesmo (digo quase sem receio).
Os artefactos que aqui apresento são projecções em forma de pau, objectos que podem servir ao mais comum dos viajantes e ao mais afoito dos expedicionários.

Vítor Israel, 2013









BABO; Francisco escreve sobre "Fogo!!"



Córnea (aconselho a ler alto que o texto ganha com a oralidade).

A combustão de um fósforo nasce embrionária na invisibilidade da córnea. Lá, a luz e as lágrimas são instrumentos da
representação visual; são a cor e o pincel do globo ocular.
Carecem de tantos cuidados as coisas visíveis como as invisíveis. São necessários tantos cuidados com a córnea gordurosa como
com a cor sovada da cabeça de um fósforo.
Ultimamente decidi deixar de aproveitar as oportunidades que suponho que me são dadas. A partir deste momento (frase esta
que só serve para acelerar o tempo) vou gastar as oportunidades. Como se de uma caixa de fósforos uma vida se tratasse. Como
se devorado pelas chamas o tempo humano coubesse no meu bolso.
Consumir é uma acção repleta de carácter. É vislumbrarmo-nos perante uma engrenagem industrial do materialismo que está
sempre em expansão; e sentirmos impulso + impulso + impulso. É sermos a partícula ignescente de uma divisão, de um imóvel,
de um bairro ou de uma poesia; de um concelho numa cidade ou de uma metrópole numa região.
Presentes perante "Fogo!!", método artístico de pertencer a uma engrenagem industrial do materialismo, reconhecemo-nos na
matéria viva que rodeia. Somos os que acendemos. Somos os que iluminamos. Apressamo-nos para a CÓRNEA.


Dizia o Kazimir Malevich: " Life knows what it is doing, and if it is striving to
destroy, one must not interfere, since by hindering we are blocking the path to a
new conception of life that is born within us ".


"Fogo!!" é uma peça e que peça. Mantêm-se aí pintada, inerte, fruto de um ritual pagão como só pode ser o do pintor; resto de uma intenção como só um homem com noções de representação pode supor.
São essas duas características que encontro particularmente vincadas no percurso artístico do Vítor Israel.
O ritual da pintura no seu carácter de irmandade, do prosaico poder das massas.
A representação de uma suposição do pintor, algo que não foi nem está para ser. Um método de liberar a imaginação do
acorrentamento escravo da história para o que há de humano no facto de estarmos vivos e sermos diferentes.
A nossa fricção mental será o suficiente para accionar o "Fogo!!", ultrapassando telepaticamente todos os militares que em
tempos ordenaram cabalmente um canhão a disparar.
O que nos une aqui neste "Fogo!!" é o oxigénio, o mesmo que envolvia Roma quando Nero usou os olhos gastos com o louro
pousado no topo da sua cabeça para ver as fornalhas domiciliárias da abrasadora cidade do Império. Esse mesmo oxigénio
que é para nós aquilo que o "Fogo!!" é para a história: um aglutinante explosivo que mantém a consistência do homem e que
produz o destino que consubstanciará o mundo.
A nossa presença física será suficiente para accionar o "Fogo!!".
O que o Vítor Israel expõe aqui na galeria Extéril é a chance
de um fogo oculto.


Por isso procurei-lhe o seguinte poema:
                                                                                                                                      Francisco.Babo.

Debaixo do céu
está o fogo,
circunscreve-o, quase o lambe,
está muito perto e no entanto
o céu nunca conhece o fogo.
O fogo são imagens
pequenos demónios negros
vistos em Jerusalém, em Babel,
no encosto dos tronos,
na altura dos ceptros,
na nuca dos ajoelhados,
nas epístolas áureas do sábio,
no que tende ao perfeito,
no que se oferece como muito,
nos que criam para nada,
no que se adquire e tem preço,
nos que se sentam à mesa,
nos que se negam a servir,
nos que escrevem sobre o fogo
falando de consolos e castigos.
Debaixo do céu está o fogo;
somos a madeira, a secura,
o sopro que mantém o fogo.


Alberto Girri

La penitencia e el mérito (1957)


                                                                                       


Guerra e paus, meninos bons e maus.

Não há nada secreto a descobrir na natureza. É precisamente isso que, paradoxalmente, um artista cuja atitude estética explora a composição descobre. As formas são, por isso mesmo, apenas pormenores que ganham escala. Subtraem-se à camuflagem da selva visual como se se tratassem de acidentes na paisagem, ganhando uma temporalidade e uma importância própria, que chega por vezes a ser cómica. Este é, também, o fenómeno que ocorre quando se passa muito tempo à esplanada ou à varanda a ver o mundo a deslizar; ou sob o efeito de ácidos ou de um qualquer delírio: de soslaio, o especial irrompe no banal. A atitude estética de Vítor Israel ocorre precisamente assim - como um gritante desencantar de pormenores. É gritante na capacidade de síntese dos invulgares formatos que encontra - angulosos, rígidos, polidos - desenhados a cores sintéticas, artificiais, familiares da pastilha elástica, do polyester e do néon.
A nossa memória não lhe nega a familiaridade com a estética dos construtivistas soviéticos. Mas essa referência é menos importante do que o resgatar da energia e inventividade de que as crianças dispõem e que, discretamente, desaparece ao longo do crescimento. Aliás, como olhar para Guerra e Paus se não como uma brincadeira de rapazes? Toda a galeria é uma batalha de emancipação da forma. É só imaginar gritinhos agudos enquanto olhamos os diferentes objectos (algures entre a pintura e escultura) que parecem fósforos, metralhadoras, camisolas, tacos de bilhar, espadas, barcos e (como não poderia deixar de ser nas brincadeiras de rapazes) objectos literal e simbolicamente fálicos. São estas características que denunciam uma proposta estética descaradamente orgulhosa do seu poder metafórico e do humor
Em Guerra e Paus, Israel obriga-nos a pensar sobre a capacidade icástica, a capacidade de traduzir claramente uma ideia; sobre o uso de ícones ou referentes em tempos obsessivamente desconfiados com tudo o que se apresenta como factual. Mas também sobre a influência das gramáticas do design gráfico no
comportamento da arte contemporânea. De algum modo, as suas extracções ou referências a determinadas obras da história da pintura (como a relação entre os seus tacos de bilhar e as lanças de guerra de uma pintura de Paolo Ucello), operam uma redução do conteúdo a mero visual, entrando desse modo em conflito com a espontaneidade infantil que inunda os objectos e formas de conteúdo novo. Embora neste conflito possam entrar as mais antigas questões da arte, não é caso para grande alarme: é só pau e madeira com belas manchas de tinta.
André Alves













JOGO DO SÉRIO

BICARBONATO DE SÓDIO
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Nessa pantomima;
Arbusto não passará de uma cratera invertida na planície do oxigénio. Quando morto não passará de uma cratera ao contrário no famigerado horizonte.
O horizonte é composto de duas superfícies fartas de quantidades de informação iguais por um triz. O vórtice dos olhos do Cintra por um lado. A manchidão da profundidade espacial por outro.
()
São as duas horas da manhã.
Rua Duque de Loulé, da ordem de grandeza.
Na urbe joga-se o sério, um espécime de anti-mantra.
Badala o relógio da Batalha iniciando a contenda no punho dos cidadãos.
Nisto, vejo um tipo na descontracção da sombra, feito aresta, forçar a entrada no número 206. Agacho-me.
Brota na minha fronte um pescoço-de-cisne, mesmo no centro do asfalto que terraplanou o que um dia foram moitas e taludes ducados. Conservo o agache, escondido agora pelo arbusto resistente. Protegido pelas escamas de agave-dragão; cai água do céu, varrendo o destino.
Arbusto; não passará de uma cratera invertida na planície do oxigénio. Quando morto não passará de uma cratera ao contrário no monocrático apocalipse.
A vida que surge do asfalto é a única que contraria as agruras da velocidade na cidade.
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O punho dele ergue-se para pintar. Erige-se a biologia.
Ouço um sibilar que me reconhece o pulmão. Cheiro as cinzas volantes. Entonteço.
Explodem à minha volta espadas-de-são-jorge ou línguas-da-sogra ou rabos-de-lagartos,
graxas-de-estudante, olhos-de-tigre, anáguas-de-vénus ou saias-da-velha ou trombetas-dos-anjos, falsos-espinheiros, costelas-de-adão.
Viajo no tempo de forma exacta, como um traço da mangueira invisível do jacto de tinta; e as cores mergulham nos meus orbitais feitas congruências, estáticas em Lascaux.
Um nome de um sítio é inferior ao seu grafito, assim como o nome de um homem.
Viajo para Cabeço das Fráguas enquanto morre Viriato. Lá, entoa-se com língua ainda viva um mantra:
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A Trebopala uma ovelha e a Laebo um porco,
a Iccona Loiminna uma vaca,
a Trebaruna uma ovelha de um ano
e a Reva Tre-(?) um touro de cobrição.
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Baila a língua no busto quando se joga o sério. Fecha-se a boca numa tentativa de ser o avesso da anatomia.
()
F.B.












TENISTA SUPREMATISTA

Amortie

Saber uma coisa implica desistir de saber por inteiro o mundo. Saber uma coisa implica aceitar saber por inteiro o mundo. Cinco quadrados são o quadrado, o quadrado, o quadrado, o quadrado, o quadrado.
Cinco quadrados são o quadrado, o outro quadrado, aqueloutro quadrado, esse outro quadrado, além o outro quadrado. O objecto existe em si mesmo, não procura, não escuta, satisfaz-se. Só.
O objecto não é um corpo, é uma relação. São olhares, posições, espaço, tempo. Risos.
Só não é sozinho no mundo. Só é ser-se sem precisar dos olhos. Existe porque é e não porque é sabido. Saber é estar dentro. E eu não posso ver.
Quando eu vejo, o que se mostra é uma percepção de mim nesse mundo-objecto. Não são as coisas. As coisas são relações. Elas existem. Eu sei-as. Eu também sei que elas existem. São 11h43. Será que importa? São 11h43 ainda. Estou sentada e escrevo. À minha direita a janela aberta deixa entrar luz e eu escrevo. O som dos carros atravessa o vidro e faz-me ver, distraio-me e olho através. O semáforo. Cores. Vermelho. Verde. A cor é difícil. Como dizê-la para além de senti-la? Não estou certa que exista em si. Mas ela existe sem que eu a diga, sem que eu a veja. Não sei. Duvido. Mas este é o texto das coisas que existem sem mim. Vou sair. Regressei.
Composição! Com/posição. Com-posição. C-o-m-p-o-s-i-ç- ã-o. C-O-M-P-O-S-I-Ç-Â-O.
Composição.
Ver é trazer da História a acção da memória. Não sabemos tudo. Não podemos. O que acontece anda em novelo com o que virá. O presente é uma ficção. Há toda uma maravilhosa obscura ocupação do cérebro para que o agora aconteça. Para que a similitude se instale. E não estilhacemos. Como átomos que somos.
Sermos inteiros parece um acaso. A uma sucessão de eventos chamamos corpo, identidade, história. Pura sensação. Sentir.
A pele é um abismo.
Sentir medo ou alegria.
O medo e a alegria serem objectos no mundo por si só.
Tudo é imensamente grande.
Tudo é imensamente pequeno.
 Enquanto escrevo as palavras colam-se a mim.
Essas palavras são as coisas que vejo. ~
As coisas deixam-se ver em palavras.
Mas nunca serão palavras.
E eu? Eu.
O que vês são ilusões.
O que vês são ilusões?
Sim, continuamos o jogo.
Tudo continua em jogo.

Claudia Lopes 2018